A grande onda de Kanagawa, ou então simplesmente “A onda", além de ser uma das xilogravuras mais conhecidas do mundo, é um grande símbolo das “pinturas do mundo flutuante” (ukiyo-e), uma técnica japonesa de xilogravura e que marcou fortemente o período Edo da história do Japão. Ela retrata embarcações de pescadores sendo ameaçadas por uma enorme onda, com o monte Fuji ao fundo. Mas além do grande símbolo como arte oriental, esta obra de Katsushika Hokusai também pode simbolizar um conceito fundamental do funcionamento do comportamento humano: figura e fundo.

A dinâmica do ato da percepção é muito mais complexa do que uma simples absorção passiva do bombardeamento de estímulos e informações que estamos recebendo do ambiente. Estamos, sim, recebendo tudo ao nosso redor, mas a singularidade que nos faz sermos únicos, diferentes de qualquer um no mundo, cria uma ordenação do fluxo da percepção do que estamos recebendo, com uma sequência de prioridade que não é igual em mais ninguém.

Para facilitar, pense o seguinte: você observando a obra de Hokusai, prioritariamente pode te chamar atenção as ondas, mas talvez para outros sejam as embarcações, outros então o monte Fuji, podendo até para alguns outros nem ser alguma forma, mas sim as cores. Todos nós percebemos o que está a nossa volta, porém cada um possui sua própria ordenação na hierarquia do que é recebido. Todas as informações chegam até nós, porém, de acordo com cada individualidade, damos importâncias diferentes a essas informações.

Essa estrutura que criamos das partes do que recebemos para formarmos o nosso próprio todo, é como uma figura que se forma em nossa mente, percebida contra um fundo, como se estivesse se acentuando dele, e este fundo, ao mesmo tempo, dando um contexto nessa figura. A figura é algo que se destaca e que por isso forma uma atenção mais clara. Mas além disso, ela é mas delimitada e também tendemos a dar um fechamento para ela que seja significativo para nós. Observe a obra novamente. As ondas ganham um destaque, não só pelo tamanho que possuem mas pelo formato, que dão a impressão de que vão engolir tudo que estiver no caminho. Já o fundo é aquilo que dá uma profundidade para a figura, sem forma delimitada e que dá um contexto para a figura que está sendo percebida. Mais uma vez olhando a tela, os pescadores podem ser um ótimo exemplo de fundo, pois além de ajudar na dimensão das ondas, também traz a tona o enfrentamento que estão tendo no momento, e que dá o caráter dramático à obra.

Deixando um pouco de lado a obra e pensando em nosso comportamento, a figura é aquela situação que está sendo vivida. Basicamente o filme passando dentro da sua cabeça agora. Pensar no que está como figura para você nesse momento envolve alguma dessas perguntas (ou todas elas juntas, se preferir): Qual é o meu estado? Como tenho me sentido? O que tem me ocorrido? Chegar na resposta para estes questionamentos representa a atenção do que está em destaque no nosso funcionamento interno. Imagine que você está em um jantar de comemoração. O que está como figura é o ambiente, as pessoas com quem está e o que estão conversando, o sabor que a comida te traz e os sentimentos que te descrevem nesse momento. O fundo então é o que dá o contexto dessa situação vivida ser vivida exatamente dessa forma. Pense que a figura está para o fundo assim como as ondas estão para o mar. Este mar dá as condições necessárias para essa onda se formar. Para o fundo propiciar essas condições, ele é formado por 3 elementos: a vida passada (as experiências marcantes que foram moldando a sua compreensão do mundo), as situações inacabadas (vivências que não foi possível dar um fechamento e que são trazidas para o presente, normalmente carregadas com pesar) e o fluxo da experiência presente (o que e como está acontecendo o agora). Volte agora para o mesmo jantar de comemoração, só que agora você insere dois novos elementos importantes. O primeiro é ser uma comemoração de despedida da família para uma mudança, e o segundo é a sobremesa ser exatamente a sua sobremesa favorita quando criança. Exatamente a mesma situação, só que experienciada com fundos diferentes, formarão figuras diferentes.

A parte mais complexa desse mecanismo com o qual compreendemos e absorvemos o mundo, é que a divisão entre figura e fundo é algo tão efêmero quanto a divisão entre onda e mar. Assim como o mar, na condição exata, se torna onda, que posteriormente volta para o mar, o fundo é uma fonte de formação de figuras novas, que serão integradas de forma a retornarem para a fundo, numa mistura que gera toda essa singularidade em cada um de nós. É na transição entre um e outro que esse mecanismo funciona. Um ponto intrigante na obra de Hokusai é que é difícil de notar logo de cara os outros elementos além da onda, quase como se tudo fosse uma coisa só, numa mistura, mas é justamente esses elementos que tornam a onda ainda mais destaque no todo. Assim como nós algo complexo de entender em suas pequenas partes, mas majestoso de apreciar em seu grandioso todo.